quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Ensaio



Em gestos lentos, saboreados, sacou a rolha da garrafa. Serviu o vinho no copo até meio. Sem prova, não era necessário, o aroma libertado pelo néctar era suficiente, invadia-lhe as entranhas, subia-lhe à cabeça, aquecia-lhe a alma.
Bem, agora sim, era altura da imersão em água fria. Pousou o copo num dos cantos da banheira, entrou então ela, primeiro um pé, depois outro. Sentou-se, tremeu com o primeiro contacto da água fria na pele quente. Com as mãos em concha, cheias de água, levou-as à altura da cabeça e deixou que a água lhe escorresse pelo rosto.
Agora sim, começava a sentir-se melhor, pegou então no copo e virou-o contra a luz. Um vermelho rubi, uma cor poderosa, baixou o copo e sentiu um leve aroma frutado, não muito, que o vinho era encorpado e com algum estágio, a colheita de 2005 tinha sido excelente. Lentamente, com prazer, alheia a tudo, Margarida ingeriu o primeiro golo. Potente, penetrante, percorreu-lhe todas as veias, estimulou-lhe o corpo, libertou-a.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Aliança




"Não sei se caminho em parte incerta
Se o tempo é este em que vegeto
Se o que vivo é agora ou longe ausente
Se sim, se não, se dor somente.

Aquela porta que no fim já foi aberta
É agora sinónimo de ti presente

Longe vai o tempo e a lembrança
Perto da presença que te invoca
A lua que é a mesma e me provoca
Esguia escorre em demasia
Desfalece, agoniza e ressuscita

Assim se completa a aliança
Do tremor da noite se faz dia


Depois disto, amarfanhou o papel e deitou-o em forma de bola para o caixote do lixo que se encontrava no canto.
Pediu outra caneca e bebeu-a até meio. Aos poucos ia aliviando, pela sua cara alcoolizada passava o sorriso da certeza.
Estava decidido, a sua colheita estava feita. A sua vida ia mudar.
E, para não perder tempo, começaria já. Levantou-se e decidido, dirigiu-se para a saída do bar. Adornou para a esquerda, tropeçou na cadeira, estatelou-se contra a mesa e sentiu a caneca atingir-lhe a nuca, no preciso instante que antecedeu o momento em que os seus queixos batiam vigorosamente no soalho da esplanada.
Acordou passadas duas horas numa cama do hospital com um penso a cobrir-lhe parte da cara.
Nada que pudesse afectar-lhe o ânimo. Hoje seria o primeiro dia do resto da sua vida."

Excerto do que há-de vir

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Entrudo Trabalhador




Mas que bela era a folia
Pelos rostos alegria
Era autentica a euforia
Tolerância ainda havia
........mas
Completa a alegoria
Da pérfida tirania
Do feriado nostalgia
Trás-nos então esta azia
de trabalhar neste dia
que a mal ninguém levaria

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Ligações virtuais



"O computador, no lento arrancar, para além de espevitar a ansiedade de Filipa, aumentava-lhe o mau humor.
Estava cansada. Cansada do dia de estudo, cansada do marasmo dos últimos tempos, da ausência, da solidão, cansada da vida, aos vinte anos…
Finalmente conseguiu ligar-se à rede, ao mundo, à vida, como ela costumava dizer quando se picava com a mãe.
Primeiro uma voltinha pelas seus sítios, as mensagens curtas dos amigos, dos amigos dos amigos, dos pseudo amigos que nem conhecia e dos anónimos amigos dos seus pseudo amigos. Enfim, uma parafernália de intrincadas e extensas ligações virtuais que só lhe aumentavam a solidão, num mundo de farto e preenchido banquete virtual."

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Rebelião



As personagens que eu criei estão-se a rebelar, revoltam-se em uníssono, não aceitam o futuro que lhes tinha reservado, querem mudar o enredo, criaram vida própria.
E eu, novo nestas andanças, inexperiente criador de histórias, auscultei as bases, ouvi os críticos e decidi-me. Vou-lhes fazer a vontade. Assim será.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Foz



"Era a sua companhia do fim da tarde, do observar do sol a cair para o lado da Foz, aquele sítio onde por imposição geográfica, o leito do seu rio de adoção, o seu leito de inquietação, abraçava as salgadas águas do Atlântico.
Era também a sua companhia do início da noite, na sala de fumo e depois, nos longos momentos que se seguiam, a acompanhava na lembrança, pela noite dentro, até ao por vezes tão longínquo adormecer."

Excerto

Armando Sena